Freud
Lea Tavora
Haverá ainda muito a acrescentar à obra de Freud ou sobre ela? Certamente. Nascido em 1856, em Freiberg, na Morávia, muda-se para Viena aos 4 anos. Inicia sua carreira na Medicina com importantes trabalhos na área da neurologia. Depois interessa-se pela histeria e vai a Paris estudar com Jean-Martin Charcot, o mestre da época, que, graças ao seu gênio e a circunstâncias específicas do sistema hospitalar francês, inova no tratamento das ditas doenças nervosas.
Pela primeira vez na história da Medicina, é possível isolar estes pacientes em um só hospital, tentar separar os histéricos dos outros pacientes, examiná-los, classificar seus sintomas.
Voltando a Viena, Josef Breuer relata a Freud um caso já antigo, o de Anna O. (Bertha Pappenheim). Nesta paciente em estado grave está a verdadeira origem da psicanálise, já que ela inventa o que chama de “cura da palavra” ou a “limpeza de chaminé”. Ela fala de cada um de seus sintomas até rememorar o acontecimento inicial que o teria provocado. Neste momento, o sintoma desaparece. Freud postula, então, como causa da doença, a existência de um acontecimento carregado de um afeto que não teria sido possível liberar então. É o método catártico: “o histérico sofre de reminiscências.”
A “escuta” de que tanto falamos em psicanálise não se limita à possibilidade de interpretar o sofrimento do paciente, mas serviu e serve ainda para a construção da teoria. Da experiência clínica à teoria, de volta à prática, e novamente à teoria, como o próprio Freud explica em 1915. Algo mais belo em termos de construção de conhecimento do que atender uma paciente que lhe pede para não fazer mais perguntas, que não a interrompa, deixando nascer o método de associação livre, regra fundamental do trabalho analítico? Algo mais belo do que dizer num certo momento “Não acredito mais na minha erótica”? A psicanálise de Freud é uma teoria em movimento, sempre reformulada, muitas vezes inconclusa, permitindo, pedindo reformulações da dimensão de um corte teórico como o da introdução do novo dualismo pulsional das pulsões de vida e morte em 1920. Sempre da clínica à teoria, e de novo à clinica. Deixando espaço para novas teorias inclusive as outras que temos hoje.
Nós continuamos lendo os textos primários, lendo seus continuadores, às vezes indo e vindo neles como talmudistas, tentando entender melhor suas palavras, comentado, interpretando e acrescentando algo mais ao escrito, opondo-nos a ele, criando a partir dele. Tantos autores já formaram novas teorias apoiando-se na obra de Freud mas propondo soluções até opostas. Alguns tornaram-se fundadores de novas vertentes. Cada um desses grupos terá sua forma peculiar de paixão pelo criador da doutrina que adota? Terão também o culto das fotos?
Talvez, na linha de Freud, ainda aconteçam novas revelações, quem sabe, a partir dos arquivos (que fantasias temos sobre estes arquivos !), como se deu a partir da publicação das Cartas a Fliess e do Projeto, em 1950. O esclarecimento que estes trabalhos proporcionaram foram tão grandes que agora, quando já começamos a estudar contando com eles, acho difícil entender Freud sem estes textos. Se não me engano, o próprio Strachey – tradutor das Obras Completas para o inglês – confessa o mesmo.
Este é o Freud – obra. Grandiosa, revolucionária, criadora de episteme. Concordando ou discordando dela, o mundo nunca mais foi o mesmo. Não é verdade que a psicanálise esteja no seu fim. Se com isto nos referimos à diminuição do número de pacientes em nossos consultórios isto deve-se muito mais a problemas sociais e a deformações do propósito da nossa prática. Volto sempre a ler Freud com um temor reverencial. Sentimental também.
Gosto de acrescentar detalhes sobre o Freud – época, sobre o Freud – homem. Ler suas biografias. Entender seu contexto. Descrever a Viena da virada do século, suas personagens imensas todas interligadas, cientistas, artistas, intelectuais, suas famílias. Certa vez me deliciei com um livro de bolso chamado “Puxa! Esquecemos Mme. Freud”. Tudo isto faz parte da psicanálise, até mesmo as brincadeiras.
Quase todos nós, fizemos as mesmas visitas em Viena a Bergasse 19, penetrando com os olhos até o pátio, como ele fez, através dos vidros desenhados. Quando estive lá, o Museu ainda não tinha sido levado para Londres. Pisávamos as mesmas escadarias por onde ele andou durante tantos anos, e nas quais sentou-se “sua princesa” a amiga Marie Bonaparte, para protegê-lo da Gestapo no último dia em Viena. As bordas dos mármores, já um pouco gastas pelo uso, fazem a grade trabalhada em ferro batido ainda mais magnífica. São salas, livros, objetos carregados para sempre de sua presença.
Andamos pelas ruas de Viena, andamos por Shönbrun imaginando os passeios de Freud e seus filhos, pensando ver lá suas pegadas. Seriam naquela época os jardins abertos ao público? Não procuramos Bellevue, talvez porque teria sido ousadia demais, talvez porque não fà´ssemos encontrar lá a desejada placa em sua homenagem sobre a descoberta do segredo dos sonhos.
Acho interessante tudo o que aprendo, de histórico e pessoal, sobre a descoberta do inconsciente. Que tal os artigos de Freud sobre Charcot, seu relatório para a Universidade de Viena, suas cartas aos amigos, principalmente ao amigo Fliess? É a teoria em nascimento, seu enquadre privado, enquanto está sendo vivida. Então, para esta visão maior, os grandes introdutores podem ser também os historiadores e críticos como Foucault, Ellenbergeer, talvez Roudinesco e tantos outros.
Busco Charcot, e percorro a Salpêtrière que também visitei. Não é mais a mesma descrita nos livros. Os quarteirões são agora constituídos de pequenos prédios modernos. Cadê o anfiteatro das aulas magnas, o anfiteatro do quadro que Freud tinha em sua casa? Cadê a iconografia com as cenas das histéricas que Pontalis descreve, cada uma traduzindo um gesto: êxtase, súplica, etc.? Não os encontrei. Uma tarde é pouco para visitas de amor.
Estamos chegando ao Freud – foto. Quantos de nós temos em nosso consultório uma foto dele, sempre maravilhosa como arte e enquanto poder de evocação de todo um mundo. Ou será que pelo menos temos a foto de seu divã recoberto de tapetes persas? Teria Freud sido realmente um homem tão bonito ou é a admiração que temos por ele que o embeleza? Freud construiu tão cuidadosamente sua imagem como construiu sua obra. Não permitia ser fotografado por qualquer um. Rasgava ou escondia textos que não aprovava mais. Nos seus últimos dias em Viena, permitiu a entrada de um novo fotógrafo para registar os ambientes até então intocados pela invasão da guerra. Trabalho terminado, acedeu sem dificuldades a posar também. Temos assim um último livro de fotos dele, em Viena, em sua casa, lá onde tudo aconteceu.
Léa Tavora
Dados da autora:
Léa Tavora – Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro
Mestre em Filosofia da PUC – RJ
Doutora em Filosofia da PUC – RJ