Tema do Ano – 2024
“Apenas a matéria vida era tão fina”[1]:
Traumatismo da ordem vital e princípio da realidade
Nos últimos tempos, o Círculo vem buscando fazer da escolha do Tema do Ano não apenas a definição de um guarda-chuva temático para as atividades deste ano, mas um convite à reflexão acerca de nosso lugar, como psicanalistas e como instituição, frente aos desafios de nosso tempo.
Em um mundo no qual as bases materiais e simbólicas das quais emergem os sujeitos e sua experiencia (de si e do mundo) vêm sendo alteradas com uma velocidade e uma profundidade inéditas, o corpo teórico, os dispositivos clínicos e os arranjos institucionais da psicanálise vêm sendo interpelados de maneira aguda.
O campo psicanalítico brasileiro tem respondido a essa interpelação de uma maneira bastante criativa, saindo de uma convencional postura defensiva em relação a seus críticos detratores para ativamente se engajar com os problemas da vida psíquica atual, revisitando e renovando seu arsenal teórico-clínico.
Esse processo tem tido efeitos muito promissores na reconfiguração do debate entre psicanálise e outros campos – tanto as ciências da cultura quanto as ciências da natureza e o universo tecno científico. Além disso, tem impulsionado discussões originais e férteis no interior da teorização psicanalítica. Finalmente, tem acarretado mudanças profundas na estruturação e na atuação das instituições comprometidas com a transmissão e o exercício da clínica psicanalítica.
Foi por essa razão que em 2022 trouxemos o tema Psicanálise e Racismo para o centro de nosso debate institucional. Essa discussão se desdobrou em 2023 com o debate aprofundado acerca do impacto do racismo estrutural, não só na cultura brasileira, mas também nas instituições psicanalíticas, expresso em seu atravessamento pelos efeitos da branquitude e no consequente elitismo histórico da formação.
O debate desses temas ocorreu paralelamente ao movimento de discussão coletiva de um processo de reestruturação e aprimoramento de nossa sociedade, que resultou na aprovação do Programa de Ações Afirmativas e em um projeto de reorganização, tanto da formação quanto da dinâmica de funcionamento institucional.
Em 2024, pensamos em desdobrar esse movimento, focando agora a discussão em tópicos que convocam a uma reflexão conceitual de natureza metapsicológica. O tema proposto para o ano é: “Apenas a matéria vida era tão fina”: Traumatismo da ordem vital e princípio da realidade.
O mote é dado, como tem ocorrido nos últimos anos, por uma frase poética que condensa de modo muito feliz o cerne da questão que sugerimos abraçar. O belo verso de Caetano Veloso em Cajuína aponta para aquilo que define a vida em geral, e a vida psíquica mais ainda – a matéria fina, a abertura ontológica, e a incessante interrogação: “Existirmos, a que será que se destina?”.
Ao ser trazido para o plano de nossas questões teórico-clínicas, o tema contém dois eixos, dois tópicos que nos parece interessante articular.
O primeiro tópico busca explorar a diferença existente, no campo dos traumatismos psíquicos, entre os traumatismos neuróticos, perversos, psicóticos e os traumatismos que põem em xeque a ordem vital. O interesse teórico-clínico desta última noção reside na importância que os traumas resultantes de assédios, abusos, discriminações, exclusões, estigmatizações e opressões de qualquer tipo vêm adquirindo no momento atual. Muitos quadros clínicos contemporâneos têm como epicentro dinâmico traumatismos da ordem vital, noção que requer maior nitidez metapsicológica.
O segundo tópico trata do declínio do princípio da realidade. Este é um conceito cuja necessidade de aprofundamento teórico foi sugerida por Gilson Iannini em debate no Círculo em 2023. No contexto dos traumatismos da ordem vital, o declínio do princípio de realidade aparece em duas principais vertentes. Na primeira, como ataque ao equilíbrio narcísico do mínimo eu. Na segunda, como ataque aos processos secundários, um dos núcleos da distinção entre realidade e fantasia, componente indissociável da homeostase da ordem vital.
Os tópicos serão tratados de diversas perspectivas e em diversas modalidades de discussões teórico-práticas.
CFP
Beatriz Pinheiro de Andrade
Benilton Bezerra Jr.
Daniela Romão Barbuto Dias
Elaine Vasconcelos de Andrade
Marcia Gaspar Gomes
Marylink Kupferberg
Consultores: Jurandir Freire Costa
Octavio Almeida de Souza
[1] Verso da música Cajuína. Caetano Veloso, 1979.