Tema do Ano – 2025
Sobre a transitoriedade: fragilidades e aberturas
“O que era isso, que a desordem da vida
podia sempre mais do que a gente?”
João Guimarães Rosa
Há algo de profundamente revelador no modo como Freud, em meio aos escombros da Primeira Guerra, voltou seu olhar para a natureza transitória da beleza e da existência. Em seu texto de 1915 Sobre a transitoriedade, esta emerge não apenas como conceito, mas como uma espécie de cristal através do qual a luz do tempo se decompõe em seus múltiplos matizes: criação e dissolução, florescimento e declínio, nascimento e morte. Um século depois, esse mesmo cristal continua a refletir, com ainda maior intensidade, as inquietações e potências de nossa época.
Vivemos tempos em que o transitório deixou de ser apenas uma qualidade das coisas para se tornar a própria textura da realidade, parecendo constituir o tecido de nossa existência. A experiência da transitoriedade é hoje intensificada por dinâmicas de aceleração e fragmentação que são, simultaneamente, fonte de precariedade e abertura para novas possibilidades. Por um lado, objetos, experiências e relações parecem efêmeros, provisórios ou descartáveis; por outro, observamos o surgimento de formas inéditas de existência e conexão.
Nas telas que multiplicam nossa experiência, o mundo se desdobra em camadas sobrepostas de realidade e simulação. O digital, mais do que ferramenta, tornou-se ambiente de criação e reinvenção contínua. A própria instabilidade deste cenário, embora causa de ansiedade e insegurança subjetiva, tem gerado respostas criativas: comunidades virtuais reinventam formas de solidariedade, artistas transformam a efemeridade em matéria-prima estética, e movimentos sociais aproveitam a fluidez das redes para articular resistências e transformações.
O corpo, antes âncora de identidade, torna-se território de experimentação e metamorfose. Entre pixels e células, nossa materialidade se revela tão maleável quanto nossos sonhos. Esta plasticidade, embora por vezes angustiante, também possibilita reconfigurações libertadoras: corpos dissidentes afirmam sua existência, tecnologias são apropriadas para fins emancipatórios, e novas formas de presença e afeto emergem no entrelaçamento entre virtual e físico.
Esse cenário em transformação é repleto de desafios para a psicanálise. Como pensar a interioridade em uma era de visibilidade contínua? Como criar espaços de pausa e profundidade em uma cultura de aceleração temporal? Como operar com a ideia de conflito quando o esgotamento substitui a repressão como fonte principal do sofrimento? Como lidar com a resistência crescente à negatividade e à frustração? Essas são algumas das questões que nos convidam a um exercício de reinvenção e a uma resistência ativa à lógica do desempenho incessante, sem perder de vista o potencial criativo presente nas transformações contemporâneas.
Para a psicanálise, trata-se de sustentar espaços onde as múltiplas vozes de nossa realidade possam encontrar ressonância. Um fazer clínico e teórico que, reconhecendo a transitoriedade como condição fundamental, acolha tanto a precariedade quanto a potência transformadora de nosso tempo. Em um mundo onde tudo parece reduzido ao instantâneo, a psicanálise é convocada a preservar e reinventar espaços de profundidade, nos quais o tempo da elaboração e do encontro ainda seja possível, e as sementes das mudanças possam germinar em solo fértil.
Comissão Executiva Técnica de Formação Permanente
Beatriz Pinheiro de Andrade
Benilton Bezerra Jr.
Daniela Romão Barbuto Dias
Elaine Vasconcelos de Andrade
Marcia Gaspar Gomes
Marylink Kupferberg
Consultores: Jurandir Freire Costa
Octavio Almeida de Souza







