Por que Ferenczi?

  • Jô Gondar

Resumo

A Coleção Grandes Psicanalistas, da Editora Zagodoni, se propõe a apresentar as principais coordenadas das obras de autores que mapearam e remapearam
a geografia do pensamento psicanalítico, situando-os em nosso tempo e em nosso contexto. Um desses grandes pensadores, introduzido por Daniel Kupermann,
foi por muitos anos considerado como o enfant terrible da psicanálise. Na atualidade, as ideias defendidas por este analista da primeira geração têm se mostrado extremamente férteis e oportunas, ratificando a afirmação de André Green de que Ferenczi seria o pai da psicanálise moderna.

O livro de Kupermann é fruto de um trabalho que tem sido cada vez mais raro nas publicações da nossa área, e mesmo das ciências humanas, de modo geral. Temos visto muitas publicações que, sob um título comum, reúnem artigos esparsos, sem articulação entre si. Não é o caso deste livro. O texto possui uma coluna vertebral firme, encadeada, em torno da qual se distribuem capítulos que se desdobram uns nos outros. É, de fato, a apresentação clara do percurso de pensamento de um autor e uma explicação inteligível dos motivos que o fazem responder tão bem aos problemas clínicos de nossa época. Escrito com leveza, finesse e humor, mas não menos consistência, o trabalho de Kupermann faz da introdução a um autor uma leitura prazerosa tanto para os que não o conhecem como para aqueles que já o conhecem há tempos.

O texto se desenvolve em torno de uma questão delicada e importante da clínica psicanalítica: o problema da perlaboração (Dürcharbeitung). De fato, esse era o título da tese de livre docência do autor, tese que deu origem ao livro: A neocatarse e a via sensível da perlaboração, defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 2019. Tradicionalmente, a noção de elaboração aparece na psicanálise de duas maneiras principais: Freud fala, por um lado, de elaboração psíquica (Verarbeitung); por outro, mostra a importância da perlaboração (Dürcharbeitung). A elaboração é um trabalho que o aparelho psíquico realiza para dominar as excitações e estabelecer ligações, enquanto que a perlaboração aparece em Freud no plano do tratamento, como um trabalho que permite ao paciente aceitar certos elementos recalcados e libertar-se da repetição. Esses dois sentidos são próximos: existe em Freud uma analogia entre o modo como o aparelho psíquico realiza o seu trabalho e o modo como o tratamento psicanalítico avança; em ambos os casos, trata-se de um trabalho que permite a passagem de um plano econômico para um plano simbólico, ou seja, um processo de vinculação que evita a descarga direta e a compulsão à repetição. Repetir, recordar, perlaborar – tal é a via evolutiva de um tratamento analítico, segundo Freud, sendo a interpretação o instrumento privilegiado do processo.

O problema é que essa via fracassa com alguns pacientes. Kupermann esmiúça dois casos paradigmáticos que nos permitem compreender as dificuldades encontradas pelo método freudiano: o de Seguéi Pankejeff, o Homem dos Lobos, e a análise do próprio Ferenczi. Freud forjara um método clínico baseado no modo como o aparelho psíquico realizava seu trabalho; porém este trabalho tinha o recalque como operador psíquico fundamental, o que fazia da interpretação a principal intervenção do analista. A coisa muda de figura quando o aparelho psíquico funciona segundo outra lógica, como acontece com os sujeitos traumatizados. Estes sujeitos não reagem ao trauma pelo recalque, e sim por meio de clivagens narcísicas refratárias às interpretações. Não sendo o trauma recalcável, ele não pode ser recordado, mas apenas repetido. Como ficaria, neste caso, a possibilidade de perlaboração?

Ferenczi fará diversas experimentações clínicas buscando essa resposta. Uma delas, mais conhecida, é a da técnica ativa, explicada de maneira muito elucidativa num dos melhores capítulos do livro. Ainda que Ferenczi tenha feito uma autocrítica do uso dessa técnica, alguns de seus elementos ainda permanecem na psicanálise contemporânea. Kupermann nos fornece um exemplo através de um caso clínico narrado por Julia Kristeva. O capítulo dedicado à traumatogênese também apresenta contribuições originais, desdobrando o mecanismo da Verleugnung (traduzida por desmentido ou desautorização) em três tempos: o tempo do indizível, o tempo do testemunho e, finalmente, o tempo do desmentido. Lemos nesse capítulo que a noção freudiana de Verleugnung é deslocada por Ferenczi para o campo relacional, o que
nos permite pensar na dimensão social e política do trauma. Kupermann mostra, a seguir, a importância de uma ética do cuidado na clínica psicanalítica, principalmente em se tratando de sujeitos desmentidos e/ou desautorizados, indicando seus princípios norteadores: a hospitalidade com a criança no analisando; a empatia entre analista e analisando; e a saúde do analista, fundamental para a sua disponibilidade sensível.

Finalmente, no último capítulo, temos a resposta de Ferenczi ao problema da perlaboração. Não é a partir da transformação da repetição em recordação que ela poderia ocorrer, como em Freud. Se não há como o trauma ser recordado, é na sua própria repetição em circunstâncias diferenciadas – circunstâncias que envolvem os afetos e a confiança no analista – que ele poderá ser perlaborado. Kupermann desenvolve mais profundamente, neste capítulo, algo que Ferenczi já sugerira – a relação entre neocatarse e perlaboração. Não se trata de uma descarga pura e simples, como na paleocatarse, que visava à descarga de um excedente; não se trata tampouco da repetição do mesmo, já que o trauma é revivido numa atmosfera de confiança. Nesse caso, em vez de uma evacuação afetiva teríamos uma perlaboração de afetos,
entendida como um trabalho psíquico capaz de produzir a mudança subjetiva à qual o processo analítico se propõe. Ferenczi valoriza aqui a dimensão quantitativa da análise, sendo preciso levá-la em conta se quisermos apreciar a perlaboração em seu justo valor.

É revigorante, para a psicanálise que praticamos hoje, o modo como Kupermann desenreda a noção de perlaboração e explora as consequências clínicas dessa via quantitativa e afetiva do trabalho analítico, tanto para o paciente quanto para o analista. Com ela, encontramos a confirmação operatória da ideia central de Ferenczi, exposta durante todo o livro: a clínica com pacientes traumatizados segue a inspiração da análise de crianças e, por este motivo, o analista precisa ter coragem de encarar e deixar vir a criança que ele foi e que ele é, sem resistir a acessar a linguagem da ternura com seu analisando. A associação entre neocatarse e perlaboração faz com que a repetição perca o seu valor negativo e adquira sua devida importância no tratamento: o que promove as mudanças não são as interpretações, os insigths ou o entendimento, e sim a experiência sensível que se realiza no encontro analítico ou, como denomina o autor, a via sensível da perlaboração.

Daniel Kupermann já havia escrito vários livros sobre Ferenczi: Ousar rir (2003), Presença sensível (2008), Estilos do cuidado (2017). Todo este percurso está presente, de maneira mais madura e mais concisa, em Por que Ferenczi?: o questionamento das instituições psicanalíticas, a apresentação de uma estética da clínica através do humor e da ousadia, uma teoria do fazer analítico e sua ética. Em torno do tema da perlaboração são articulados todos esses temas, permitindo que o autor avance para uma tomada de posição mais forte e, ao mesmo tempo, mais nuançada no campo psicanalítico. Tudo indica que o tempo e a experiência aprimoraram a escrita de Daniel Kupermann, fazendo de Por que Ferenczi? o seu melhor trabalho.

Publicado
06-08-2020
Como Citar
GONDAR, J. Por que Ferenczi?. Cadernos de Psicanálise | CPRJ, v. 42, n. 42, p. 255-258, 6 ago. 2020.