Wittgenstein e Ferenczi

o jogo de linguagem paciente/terapeuta

  • Danilo Marcondes Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ; Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ

Resumo

Não há um único método filosófico, mas há métodos como diferentes terapias.
[WITTGENSTEIN, Investigações Filosóficas §133]

Ludwig Wittgenstein, na filosofia da linguagem, e Sándor Ferenczi na psicanálise, são dois dos pensadores mais originais do século XX. Mas nunca houve um encontro entre ambos e muito provavelmente ignoraram as obras um do outro, pela diferença de área e por circunstâncias do contexto, embora fossem praticamente contemporâneos.

Flora Tucci promove esse encontro através de temas que possibilitam uma interação inovadora e produtiva entre os pensamentos desses dois autores, que torna possível um diálogo não realizado, mas que, como o leitor verá, não só faz todo o sentido, mas abre novos caminhos de interlocução e de desenvolvimento para questões cruciais na filosofia e na teoria psicanalítica. Suas leituras e sua experiência clínica permitem uma rara e profundamente original articulação entre temas e autores que não encontramos relacionados na literatura especializada em ambas as áreas, filosofia da linguagem e psicanálise.

Por que essa relação é importante e que contribuição pode trazer para esses dois campos é a pergunta que nos guia e que deve necessariamente ter múltiplas respostas. Podemos ver a psicanálise como teoria através de sua formulação inicial com Freud, e, no caso que nos interessa aqui, em seu desenvolvimento bastante original por Ferenczi. Mas este é sobretudo um grande inovador, pela maneira como desenvolve na técnica psicanalítica seu modelo de relação entre analista e paciente com uma maior ênfase na interação entre ambos do que a preconizada por Freud. Há um verdadeiro jogo de linguagem wittgensteiniano entre terapeuta e paciente, e é nisso que se encontra a originalidade da proposta de Ferenczi. Mas o que é esse jogo de linguagem e em que medida podemos entender essa interação com base na metáfora, ou mesmo no modelo do jogo? É Wittgenstein que nos permitirá tratar dessa questão.

Como nos mostra a autora, Wittgenstein foi um filósofo altamente inovador ao romper com sua primeira versão da filosofia analítica da linguagem, apresentada no Tractatus Logico-Philosophicus de 1921. Nas Investigações filosóficas, publicadas postumamente em 1953, Wittgenstein apresenta uma visão alternativa à do Tractatus e se afasta de seu primeiro pensamento, chegando mesmo em determinado momento a se referir ao “autor do Tractatus” (§ 23) como se fosse alguém distante, com quem não mais se identificasse.

É nas Investigações que Wittgenstein apresenta o que seria sua principal contribuição a uma nova visão sobre linguagem, rompendo com o formalismo e o logicismo da concepção então dominante, ao introduzir o “jogo de linguagem” (Sprachspiel) como novo modo de compreender a linguagem em uso, valorizando a linguagem de nossa experiência, a troca entre falante e ouvinte, em oposição ao papel central atribuído anteriormente à estrutura lógica da proposição e sua relação com o real.

Um jogo é, em geral, sempre jogado entre pelo menos dois parceiros, dois interlocutores, mas é crucial que se entenda a linguagem também como “linguagem não verbal”, ou seja, como toda forma de interação, produtora de significado, que recorre ao uso de signos. Do gesto à vestimenta, tudo significa, e são esses processos de significação que se tornam fundamentais para a terapia psicanalítica – e é através deles com frequência que o inconsciente se manifesta.

O significado se constitui através de um jogo de que participamos falantes. A metáfora do jogo – ou talvez mais do que metáfora, o modelo do jogo, porque tem um caráter interpretativo – permite ressaltar a interação, apresentando a linguagem como um processo dinâmico em que nada está pronto ou concluído e em que o significado se constitui de diferentes maneiras. Cada jogo tem suas “regras”, mas o conceito de regra não deve ser visto de forma rí gida como a regra de cálculo ou a regra sintática em nossa gramática (Investigações § 81). Regras são procedimentos que nos permitem interagir, negociar as formas de relação entre os participantes no jogo, e que não possuem um formato único, mas se definem pelos próprios participantes do jogo, seus objetivos ao jogar e os elementos de que dispõem para isso. Com frequência as regras não estão fixas e determinadas, mas temos apenas linhas gerais que vão dar origem a aplicações específicas. Podemos improvisar desde que nosso parceiro aceite isso e também o faça, “fazemos as regras na medida em que jogamos” (Investigações §83). Com frequência podemos começar um jogo sem saber onde vamos chegar e sem necessariamente supor um ganhador e um perdedor.

É essa matriz interpretativa da regra do jogo que se revela proveitosa na teoria e na técnica psicanalíticas. Uma sessão psicanalítica pode ser vista nesta perspectiva como um jogo de linguagem em que dentro dos contornos mais gerais da teoria psicanalítica e de seus conceitos fundamentais definimos terapeuta e paciente, a forma pela qual jogamos nossas estratégias discursivas, em uma relação que envolve um engajamento no jogo e também, principalmente, uma empatia entre os jogadores.

Há muitos jogos, de cartas principalmente, mas também de xadrez, em que os jogadores devem “esconder o jogo”, mas para os jogadores que já antecipam isso, “esconder o jogo” é também uma forma de jogar, de definir estratégias discursivas e de ao menos até certo ponto contar com a empatia do outro jogador, mesmo em um contexto de conflito. Nessa perspectiva a técnica psicanalítica adquire uma nova dimensão e permite abrir novos caminhos de reflexão e de aplicação.

É para o entendimento dessa relação, de sua especificidade na sessão psicanalítica e mais amplamente na técnica terapêutica psicanalítica, que ocupa um lugar central para Freud e onde Ferenczi foi inovador, que a autora traz um novo elemento de importância crucial e uma de suas principais contribuições, se não a mais importante. Trata-se da ética, da dimensão ética da relação entre terapeuta e paciente. Ou seja, da necessidade de se pensar essa relação, mesmo que particularmente assimétrica, como essencialmente ética. Mas ética tornou-se para nós um termo excessivamente amplo e, por isso, vago. Aqui, contudo, se trata de pensar uma ética da psicanálise e nesse sentido interpretar a prática psicanalítica como tendo uma ética própria, que consiste essencialmente no reconhecimento mútuo entre paciente e terapeuta como parte de um processo interativo que, como dissemos, tem suas próprias regras, que vão se constituindo e sendo negociadas na medida em que o jogo é jogado. O elemento ético mais original em Ferenczi consiste em dar ao paciente um papel mais ativo e mais integrante do ato de jogar, assumindo um desempenho mais dinâmico e, portanto, mais responsável pelo que ocorre no jogo da experiência clínica. Ao mesmo tempo, cada jogo é um jogo e uma nova sessão é um novo jogo, seja com o mesmo paciente ou com outros. Mas as experiências do analista e do paciente vão sendo constituidoras do jogo, de seus efeitos e consequências, como as regras que fazemos quando jogamos.

A discussão wittgensteiniana das regras, parte central de sua concepção de jogo de linguagem, ilumina de forma privilegiada o jogo da terapia psicanalítica, na medida em que a autora soube trazê-la para a análise do pensamento e da prática de Ferenczi. Nesse aspecto o Diário Clínico tem importância central; o caráter ético dessa relação pode ser ressaltado. Mais do que uma reiteração da relevância da ética, frequentemente encontrada, trata-se aqui de uma proposta efetiva de sua aplicação prática e de sua importância concreta na clínica diante de dilemas que o terapeuta enfrenta constantemente.

É raro encontrarmos essa articulação entre pensamento filosófico, teoria psicanalítica e prática clínica, tendo como questão unificadora a preocupação com a ética, ou seja, a formulação de uma ética da psicanálise. A autora levanta essa questão, relativamente ainda pouco discutida, e aponta, através de sua reflexão, caminhos possíveis para o desenvolvimento de uma proposta nesse sentido. Sua formação filosófica, sua formação psicanalítica e sua experiência clínica trazem elementos fundamentais para o tratamento desse tema. O domínio pela autora de uma ampla bibliografia em ambas as áreas deixa claros seus conhecimentos sobre o status quaestionis, tomando esses conhecimentos como solo para o desenvolvimento de sua própria proposta interpretativa inovadora. Isso lhe permite ir além das questões tradicionalmente tratadas quando se aproxima filosofia e psicanálise, geralmente relacionadas à linguagem e à subjetividade. Daí a relevância de trazer a questão da ética para a discussão.

A aplicação de teorias filosóficas a outras áreas do pensamento e da prática tem sido rara entre nós e constituiu um desafio constante para o desenvolvimento de efetiva reflexão interdisciplinar, muito discutida, mas pouco realizada de forma efetiva. Não se trata aqui, portanto, apenas de um trabalho comparativo, o que no caso já seria um imenso esforço, mas efetivamente de uma proposta de articulação entre elementos fundamentais do pensamento de dois grandes autores, o que consiste em um grande desafio, cujo resultado, a meu ver, extremante produtivo em sua complexidade, o leitor poderá julgar a partir de diferentes perspectivas.

Biografia do Autor

Danilo Marcondes, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ; Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ

Doutor em Filosofia. Professor de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro Associado em Formação no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Publicado
16-11-2022
Como Citar
MARCONDES, D. Wittgenstein e Ferenczi. Cadernos de Psicanálise | CPRJ, v. 44, n. 47, p. 271-274, 16 nov. 2022.