Com Ferenczi – O coletivo na clínica

racismo, fragmentações, trânsitos

  • Flora Muniz Tucci de Azevedo Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ, Rio de Janeiro, RJ

Resumo

Com Ferenczi – O coletivo na clínica: racismo, fragmentações, trânsitos (2022) é o segundo livro resultado da parceria de Eliana Schueler Reis e Jô Gondar,lançado cinco anos depois de Com Ferenczi: clínica, subjetivação, política (2017). O primeiro livro da parceria se consolidou como uma referência para pensarmos a psicanálise contemporânea e o aprofundamento da leitura da obra de Sándor Ferenczi.

Como afirma Jô Gondar, “nenhum pensador está acima das circunstâncias históricas às quais ele pertenceu. Porém, como escreve Edward Said (2014), “os pensadores que permanecem atuais são aqueles que, mesmo quando inseridos num contexto determinado, apresentam intuições e ideias que extrapolam esse contexto” (REIS; GONDAR, 2022, p. 176). E é neste terreno que o trabalho das autoras – importantes pensadoras dos nossos tempos – vem se desenvolvendo ao longo dos anos. Estudiosas da obra de Sándor Ferenczi, Gondar e Reis, implicadas na complexidade e multiplicidade das convocações clínicas e políticas, traçam um percurso de investigação ao qual estão inseri- das, onde o universo do pensamento ferencziano é convidado a dançar com os mais vastos temas e autores.

Ao lermos Com Ferenczi – O coletivo na clínica: racismo, fragmentações, trânsitos não resta dúvida de que Ferenczi extrapola seu contexto e segue dialogando com nossos tempos; mas também não há dúvida de que poder acessar de forma tão rica os detalhes de sua presença em nossas vidas hoje, é o resultado de um trabalho minucioso.

O livro anuncia, desde os agradecimentos, em que solo desbravaremos as reflexões que serão trazidas ao longo da obra. Eliana e Jô deixam sua marca com um agradecimento aos trabalhadores de serviços essenciais e da área da saúde durante o período da pandemia de coronavírus. Um importante posicionamento diante dos eventos que tínhamos recentemente experimentado mundialmente em decorrência da pandemia. Nos lembram que não estivemos todes no mesmo barco – e destacar isso nas primeiras páginas não parece algo meramente protocolar. O livro já começa ali.

O texto de abertura do livro é de Eliana, Reflexões de uma psicanalista branca diante do racismo estrutural no Brasil. Nele, a autora explora a questão do racismo estrutural, tomando como ponto de partida uma experiência clínica “real e dolorosa no acompanhamento de uma paciente negra” (REIS; GONDAR, 2022, p. 22). A partir de tal experiência, debruça-se sobre sua condição de mulher branca inserida em uma “realidade classista e racista” diante de uma “profunda ignorância em relação à amplitude do mundo real” (Id., ibid., p. 19).Eliana expõe uma vivência clínica complexa com uma paciente negra em processo de reconhecer a própria negritude. A analista se confronta com seus limites, como analista branca, para acompanhar a trajetória de sua paciente, experimentando novas implicações em sua história. Caminhando com Ferenczi, Reis utiliza as concepções de “insensibilidade do analista” e “hipocrisia profissional” para pensar sobre as dificuldades nesse processo analítico; nada mais ferencziano do que se debruçar sobre os insucessos clínicos. E, explorando esse insucesso, somos convidades a pensar a transmissão geracional de marcas traumáticas, o sentido de branquitude no trabalho psicanalítico, mutualidade, tato e desmentido.

Desmentido é um tema que se faz muito presente nos outros dois artigos desta primeira parte, escritos por Jô Gondar, Um racismo desmentido e O indomável em nós. Fanon com Ferenczi. Frantz Fanon – psiquiatra e psicanalista martinicano, importante pensador decolonial – é um autor que acompanha a autora nesses dois textos. Gondar pensa o racismo no Brasil e seu desenvolvimento mais complexo e sutil em relação a outros lugares: “aqui a população branca segregou os negros se mesclando com eles, criando uma forma tão curiosa quanto perversa de racismo: um racismo poroso, silenciado, desmentido” (Id., ibid., p. 32). Assim como Reis, Jô Gondar se implica como psicanalista branca e critica a neutralidade diante deste tema: “enquanto analistas, temos responsabilidade seja na transmissão, seja no combate ao racismo” (Id., ibid., p. 43).

Diante desta responsabilidade e suas implicações teóricas e clínicas, tomo como hipótese que, até o presente momento, temos anunciado o solo onde se desdobrarão os artigos subsequentes do livro. Acontecimentos como o assassinato de George Floyd nos EUA e a morte do menino Miguel em Recife ao longo do período pandêmico tornaram evidente como, apesar de estarmos vivendo um acontecimento mundial, a igualdade de condições era mera ilusão. E abrir o livro com discussões que colocam em evidência esse tema é situar os desdobramentos que estão por vir.

Compartilhando uma experiência que vivi ao ler o livro, sinto que a partir da segunda até a quarta e última parte, temos uma mudança de ambientação. Apesar de ser possível compreendermos a organização e distribuição dos textos,uma sensação diferente foi despertada. Algo que o mergulho na obra ferencziana – coincidentemente – me causa: a perda de uma linearidade de ideias.

Quando comecei a pensar como desenvolveria esta resenha – uma mistura de grande honra e desafio – me vinha à cabeça como poderia propor uma linha de continuidade de leitura dos dois livros das autoras; também tive a ideia de propor algum fio condutor que pudesse orientar os leitores nesta nova edição. No entanto, fugindo aos planos iniciais, o caminho que proponho seguir agora é proveniente da minha experiência espontânea como leitora.

Como afirmam Gondar e Canavez: “por mais sofisticado que seja um encadeamento, ele obedece, de maneira mais clara ou mais disfarçada, a um pensamento em linha reta. E a linha reta é coercitiva, impondo um leito de Procusto subjetivo” (REIS; GONDAR, 2022, p. 188). Apesar de ter uma estrutura muito bem desenhada, o livro paulatinamente vai tomando uma forma em que “nos perdemos” na continuidade e nos misturamos com o processo criativo das autoras. Um convite a experimentar “uma estrutura de ideias não sequencial, um amalgamento de texto e imagens numa disposição em rede, em que múltiplos quadros podem ser relacionados de maneiras diversas segundo a atividade do leitor, que tem diante de si um labirinto a ser percorrido e desvendado” (Id., ibid., p. 93-94).

Nesse labirinto a ser percorrido e desvendado, novos sentidos e percepções são acionados. “Ouvir com os olhos”, “o toque do olhar”1, provocam uma ativação da multisensorialidade, multimodalidade, canais não verbais de comunicação, expressão de intensidades de afeto que não se fazem dizer2.

Por exemplo, um fenômeno bastante explorado no livro é o universo dos sintomas transitórios concebidos por Ferenczi no começo de sua obra. Eliana busca explorar esses fenômenos partindo da concepção de Leibniz das pequenas percepções, afirmando ser “um conjunto de elementos (...) onde o corpo aparece nesse campo como espaço no qual se expressam os aspectos de uma memória de fragmentos que não se organizam necessariamente em uma representação simbólica e, mesmo assim, são produtores de sentido” (Id., ibid., p. 202). Como afirma Leonardo Câmara: “esse talento de observação fina em relação aos gestos tornou inevitável a conceitualização do modo de expressão por movimentos corporais” (apud REIS; GONDAR, 2022, p. 54)

Mas para onde será que essa “observação fina” nos leva? Acredito que o trabalho das autoras não seja somente manter Ferenczi vivo por uma simples admiração ou devoção. Caminhar com Ferenczi é trabalhar junto em seu legado de estarmos atentos aos diversos jogos de poder, tanto na teoria quanto na clínica psicanalítica (REIS; GONDAR, 2022, p. 223), e desnudar a normatividade presente na suposta neutralidade (hipocrisia) profissional (Id., ibid., p. 219). É um compromisso ético de “mapear algumas categorias das nossas teorias que tendem a normatizar o entendimento e as intervenções com nossos pacientes” (p. 222). Como nos diz Jota Mombaça: “À revelia do mundo, eu as convoco a viver apesar de tudo. Na radicalidade do impossível. Aqui, onde todas as portas estão fechadas, e por isso mesmo somos levadas a conhecer o mapa das brechas” (MOMBAÇA, 2021, p. 14). Penso que podemos situar o trabalho de Jô Gondar e Eliana Schueler Reis como um mapa das brechas.

Apesar de o livro ser muitas vezes ambientado pela atmosfera de um mun do pandêmico – com artigos que, inclusive, aprofundam-se em discussões como catástrofe, ruptura na continuidade dos modos de viver, terror, sonhos traumáticos, dentre outros temas – as autoras experimentam com Ferenczi a perspectiva de busca por alargamento do campo do “nós” (REIS; GONDAR, 2022, p. 104) e metamorfoses subjetivas (p. 127): a busca da prática social da esperança e a criação de um futuro (p. 104). Vemos rascunhos serem desenha-dos para um mundo por vir. Como afirma Paul Preciado em seu livro Um apartamento em Urano: “é urgente inventar uma nova gramática que permita imaginarmos uma outra organização social das formas de vida” (PRECIADO, 2020, p. 41).

E, creio poder afirmar que Eliana Schueler Reis e Jô Gondar caminham juntas a convocação de Preciado ao se debruçarem na seguinte questão: “A psicanálise, para enfrentar este desafio (dos novos estados psíquicos), precisa afiar seus instrumentos em novos usos, repensar sua forma, sua função terapêutica e dialogar com outros saberes” (REIS; GONDAR, 2022, p. 123)

Biografia do Autor

Flora Muniz Tucci de Azevedo, Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ, Rio de Janeiro, RJ

Psicanalista. Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Membro associado ao Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Publicado
09-08-2023
Como Citar
TUCCI DE AZEVEDO, F. Com Ferenczi – O coletivo na clínica. Cadernos de Psicanálise | CPRJ, v. 45, n. 48, p. 145-249, 9 ago. 2023.