Lacan
Rosa Jeni Matz
Lacan foi um bandeirante das trilhas do inconsciente. Teórico da verdade, do não-todo, da meia-verdade, pensou o inconsciente através da topologia, em estudos posteriores dos nós borromeanos, tentativa fundamental de apreender o real, o impossível, nó que aparece como escritura em R.S.I., unindo o real, o simbólico e o imaginário.
No Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, retomado como pulsação temporal. Freud e Lacan são desbravadores. Freud descobre o inconsciente, e Lacan desbrava o campo do objeto a. Ambos sofreram rejeição de suas idéias, Freud, por uma cultura vitoriana, de valores morais dogmáticos, e Lacan, por psicanalistas, que seriam mais ortopedeutas do que criativos, aliás como a maioria dos gênios, como Nietzsche, Spinoza, Wittgenstein. Apesar do termo gênio estar em desuso na contemporaneidade, pelo caráter transcendental a ele atribuído, numa determinada época surgem homens raros em idéias, homens significantes, que trilham com liberdade e originalidade pela vida. Lacan, discípulo fiel de Freud, denominando-se freudiano, mostrou em toda sua obra admiração e respeito pelo fundador da Psicanálise. Mas, como todo teórico criativo, ousou ir além de Freud, abrindo novas perspectivas para o saber psicanalítico, embora afirmando que fazia uma releitura fiel do texto freudiano.
Lacan nasceu em 13 de abril de 1901, em Paris, filho de uma família de fabricantes de vinagres, tendo educação católica. Aos 16 anos rompeu com a herança religiosa familiar, dedicando-se aos estudos de Spinoza, e pouco depois, à leitura em alemão de Nietzsche. Orientou-se para a psiquiatria, estudando a clínica de doenças mentais no hospital Sainte-Anne. Em 1931, realizou uma síntese entre as áreas de saber de seu interesse: a clínica psiquiátrica, a psicanálise de Freud, o surrealismo, e concomitantemente, a filosofia, para escrever a sua tese de medicina “Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade”, sobre Marguerite Pantaine, que também será chamada de “O caso Aimée”.
Em 1936, sendo membro da Société Psychanalytique de Paris (SPP), Lacan, interessa-se pelo tema do estádio do espelho, apoiando-se em Henri Wallon, Alexandre Kojève e Alexandre Koyré, e inventa uma teoria do sujeito, dando-lhe uma criativa conceitualização. O estádio do espelho ordena-se a partir de uma experiência fundamental de identificação, onde a criança conquista a imagem do seu próprio corpo. A identificação primordial da criança com esta imagem promove a estruturação do eu, encerrando a vivência do corpo despedaçado. Antes do estágio do espelho a criança não experimenta seu corpo como uma unidade, mas sim como algo disperso. O primeiro tempo dessa fase é de uma confusão entre a criança e o outro, assujeitando-se ao registro do imaginário. No segundo tempo, a criança descobre que o outro do espelho não é um outro real, mas uma imagem, distinguindo a imagem do outro da realidade do outro. No terceiro tempo reconhece que a imagem do espelho é a dela, recupera a dispersão do corpo despedaçado numa totalidade unificada, representação do próprio corpo. A imagem do corpo se torna estruturante para a identidade do sujeito, pela dimensão imaginária, eu ideal, embora haja previamente sustentação simbólica, pelo Outro, ideal do eu.
Lacan pode ser considerado o “filósofo” da psicanálise. Realizou leitura filosófica da obra freudiana, trocando idéias com Koiré, Kojève, Hyppolite, Bataille, Merleau-Ponty etc., e também, através da leitura de Hegel, Heidegger, Wittgenstein entre outros, deu um sentido contemporâneo à psicanálise, que a liberta tanto da psiquiatria como da conceitualização acadêmica e tradicional da teoria freudiana. Koyré, aluno de Husserl, discutiu, entre outros temas, o cogito de Descartes, através de estudos baseados nas idéias de Husserl, desenvolvidos posteriormente por Lacan; e Kojève, dedicado aluno de Koyré, tornou-se mestre fundamental para os estudos sobre Hegel, de onde Lacan construirá uma teoria sobre o desejo, baseando-se na dialética do senhor e do escravo, em A fenomenologia do espírito de Hegel, e de onde também emergirá a sua afirmação que o desejo do homem é o desejo do Outro, reconhecendo no desejo do outro, seu semelhante, um antecedente imediato.
Outra referência fundamental é a lingüística de Saussure e de Jakobson. Ferdinand de Saussure definia o signo como a relação entre significado e significante, conceito e imagem acústica. Lacan forneceu primado ao significante, afirmando que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, discurso do Outro, sendo o sujeito efeito do significante, a linguagem condição do inconsciente. Este sujeito, Je, separado do eu (moi), é o sujeito do inconsciente, representado, também, por uma cadeia de significantes, daí a enunciação um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante. Jakobson destacou na obra Fundamentals of Language a estrutura bipolar da linguagem: a seleção (paradigma) e a combinação (sintagma), aproximando a seleção da metáfora e a combinação à metonímia. Também assinalou que os dois processos aparecem nos sonhos analisados por Freud. Lacan, a partir da leitura de Jakobson dirige a condensação à metáfora, e o deslocamento à metonímia. O sintoma pertencia a ordem da metáfora, enquanto a metonímia seria referida ao desejo inconsciente, sempre desejo insatisfeito, de outra coisa. Impondo uma torção ao Cogito de Descartes, Lacan diz: “Penso onde não sou, logo sou onde não penso” onde o Je é definido como um shifter (Jakobson), sujeito da enunciação sem significá-lo.
A partir de leitura de Lévi-Strauss, Lacan construiu a tríade Simbólico, Imaginário e Real, amarrando o inconsciente freudiano. Conheceu Lévi-Strauss num jantar oferecido por Koyré, e logo nasceu uma amizade. Após o estudo de Estruturas elementares do parentesco, repensa o complexo de Édipo, a proibição do incesto, como uma funçao simbólica, lei inconsciente da organização da cultura. Todo sujeito determina-se por seu pertencimento a uma ordem simbólica. Na categoria do simbólico, o inconsciente freudiano é repensado como cadeia de significantes. O Nome-do-Pai é o conceito onde a função simbólica se torna lei, que é a proibição do incesto, processo descrito por Lacan através da Metáfora Paterna, que pode ser ilustrada com o jogo do fort-da freudiano, onde ao jogar o carretel amarrado num cordão, a criança simboliza a presença e ausência da mãe, tendo acesso ao simbólico. O fort-da é uma substituição significante, o carretel uma metáfora da mãe, e a atividade lúdica demonstra que a criança passou de uma posição passiva, assujeitada, para uma posição ativa. A criança inverte a situação, agora ela que abandona a mãe simbolicamente, tornando-se mestre da ausência devido a identificação; não é mais o único e exclusivo objeto do desejo da mãe, o objeto que preenche a falta do Outro, o falo, mobilizando, então, seu desejo como desejo de sujeito, dirigindo-se para objetos substitutos do objeto perdido, tendo acesso ao simbólico através da metáfora paterna, sustentada pelo recalque originário.
O recalque originário é estruturante, sendo uma metaforização. É a simbolização primordial da lei, efetuada através da substituição do significante fálico pelo significante Nome-do-Pai. A criança substitui a posição de ser o único objeto do desejo da mãe, o falo, a dialética do ser, para a dimensão do ter. O advento do sujeito implica numa operação inaugural de linguagem, esforço simbólico, onde a criança renuncia ao objeto fálico; sendo que o significante fálico, significante do desejo da mãe, é recalcado e substituído pelo Nome-do-Pai. Como Lacan afirma “que não há sujeito se não houver um significante que o funde”.
O registro imaginário, conceito inicial correlato ao estádio do espelho, desenvolvido por Lacan em seus primeiros estudos, refere-se a uma relação dual com o semelhante. Seria o “lugar”; do eu (moi), das ilusões, da alienação, do engodo, e daquilo que participa da formação do corpo humano, de sua gestalt. A partir de 1970, a categoria do real ocupa lugar dominante na obra lacaniana, antes ocupado pelo simbólico, e de início, pelo imaginário. As três categorias serão sistematizadas numa representação borromeana, onde o imaginário, no seminário O Sinthoma, assegura a consistência do conjunto.
O real se caracteriza pela ex-sistência ao imaginário e ao simbólico, discernido pela modalidade lógica do impossível, sendo aquilo que não cessa de não se escrever. Não podendo ser simbolizado, expressa a impossibilidade da relação sexual, não há relação sexual, que é ininscritível. No seminário O Sinthoma, Lacan diz que o real é sem lei, não tem ordem. Pelo real aproximamos à categoria do gozo e do objeto a, campo lacaniano por excelência. Em Freud encontramos em alguns trabalhos o termo genuss. Podemos referir ao mito do pai da horda primitiva, o pai originário, Urvater, como expressão do Gozo Absoluto. O gozo aponta para o excesso, tensão que ultrapassa um limite, como diz Nasio: é o estado máximo em que o corpo é posto a prova.
O termo objeto a foi introduzido por Lacan, inicialmente, como outro, objeto desejado pelo sujeito, perdido, não representável, resto não simbolizável. Lacan o introduz no seminário “A transferência”, onde comenta “O Banquete” de Platão, trazendo a questão da agalma, ao se referir a Sócrates, como objeto de desejo de Alcibíades. Em obras posteriores, o objeto a se aproximará cada vez mais do conceito de resto não simbolizável, referente ao gozo, ao real, heterogêneo ao conjunto significante. Refere-se às partes destacáveis do corpo: seio, fezes, olhar e voz. Pode ser teorizado também como mais-gozar, um excesso que se acumula.
Lacan coloca a posição singular do analista como objeto a. Ocupando inicialmente na transferência o lugar de sujeito suposto saber, o analista responde aí à paixão da ignorância, que conduz o sujeito à análise. Mas, o analista irá des-ser deste lugar durante o processo de análise mantendo o semblante de objeto a. O desejo do analista não é o desejo pessoal de um psicanalista, mas o “de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele.”
Lacan em toda a sua vida ousou, no sentido de criar, explorando como um bandeirante as regiões do gozo inconsciente, e procurando desvelar o enigma, enunciação da verdade inconsciente. Foi além do princípio do prazer. Morreu em 9 de setembro de 1981. Como no Seminário A ética da psicanálise, ao se referir a Antígona, como aquela que representa o não ceder de seu desejo, também, em vida e obra, Lacan lutou pelo desejo de uma psicanálise que recuperasse o sentido de Freud, e ao mesmo tempo, acrescentou à teoria e praxis novos conceitos que tanto nos auxiliam na clínica psicanalítica e no pensamento sobre o sofrimento humano. Ao sofrer o que denominou excomunhão, em 1963, pela IPA, termo que utilizou por uma identificação a um traço unário, o de Spinoza, construiu e fundou, em 1964, após momento de dor, A Escola Freudiana de Paris, desejando assim enfatizar a sua fidelidade e reverência a Freud, respeito encontrado em toda sua obra. A partir da desvinculação institucional a IPA, inaugurou-se um novo mundo possível, onde pôde argumentar as suas idéias, principalmente aquelas relacionadas à prática psicanalítica, e daí renovar a psicanálise. Ato de coragem.
Como diz Lacan, em R.S.I.: se o real é a vida, embora ela participe do imaginário do sentido, gozar a vida é algo que pode se situar no ponto central, ponto do objeto a, que conjuga três superfícies que se cruzam.
Assim como Spinoza, Nietzsche e outros pensadores, que lutaram pela afirmação à vida, Lacan soube transformar a sua potência de vida em ato criativo.
Coragem, em vida e obra…
Rosa Jeni Matz
Referências Bibliográficas:
Dor, J.. Introdução à leitura de Lacan. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
Kaufmann, F.. Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
Lacan, J.. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
R.S.I., 1974 – 1975, cópia.
O Sinthoma, 1975 – 1976, cópia.
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Roudinesco, E.. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Roudinesco, E., Plon, M.. Dicionário de psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Nasio, J.-D.. Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
Os olhos de Laura. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
Dados da autora:
Rosa Jeni Matz – Membro Efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro
Mestre em Psicologia – PUC, Rio de Janeiro







