Tema do ano 2016
Recordar, repetir e elaborar e as construções da psicanálise
Recordar, repetir e elaborar (1914) é um dos trabalhos que compõem a série de Artigos sobre Técnica redigidos por Freud entre 1911 e 1915. Escrito no início da Primeira Guerra Mundial, introduziu novas recomendações sobre técnica psicanalítica, apresentando pela primeira vez conceitos como repetição e elaboração, que permitiram desdobramentos importantes para a conceitualização da segunda tópica freudiana. Já em 1914, Freud apontava para alterações na técnica psicanalítica que substituíram o método catártico e a hipnose pela associação livre e a interpretação das resistências, permitindo o aparecimento de recordações e lembranças encobridoras. O modelo teórico de Freud para o tratamento psicanalítico envolvia, portanto, a rememoração, a repetição transferencial e a elaboração psíquica. Contudo, como o paciente recordava repetindo, a questão apontava para o terreno das atuações e da compulsão à repetição. Foi assim que, em Além do princípio do prazer, a noção de compulsão à repetição fez-se central associada à pulsão de morte, ao retorno do recalcado e às neuroses traumáticas (de guerra).
Pensar sobre Recordar, repetir e elaborar na psicanálise atual conduz-nos a duas vertentes instigantes da questão que interligam teoria, técnica e clínica psicanalítica. A primeira perspectiva remete a associações entre o texto de 1914 e as questões traumáticas, observadas na clínica e na cultura contemporânea. Traumatismos primários, conteúdos não representados ou irrepresentáveis, processos de desligamento, repetições de situações traumáticas não elaboradas, tanto individual quanto coletivamente, desafiam a clínica psicanalítica imersa em um conturbado contexto sociocultural como o atual. Tal observação parece colocar a recordação, a repetição e a elaboração em lugar central na psicanálise contemporânea. Contudo essas questões complexificaram-se, abrangendo não mais apenas o universo intrapsíquico, mas perspectivas intersubjetivas e transgeneracionais. Além disso, o tratamento de pacientes difíceis demandou novos aportes teórico-clínicos e alterações na técnica e no enquadre que ultrapassaram as recomendações freudianas. Tais constatações conduzem-nos à segunda vertente do tema proposto, isto é, ao debate sobre esses desdobramentos ilustrados pelos teóricos das diversas correntes do pensamento psicanalítico que, em conjunto, representam a própria história da psicanálise.
Desde as recomendações iniciais propostas por Freud (1914), a psicanálise não cessou de introduzir mudanças técnicas significativas, que visavam acompanhar as necessidades de uma clínica em sintonia com as demandas clínicas e os desafios do contexto sociocultural. Assim, Ferenczi (1928) propôs a elasticidade da técnica, Winnicott (1954) sugeriu a regressão no setting e Bleger (1968) ampliou o setting analítico através do conceito de enquadre. São mudanças que, dentre tantas outras, refletiram-se em múltiplas articulações que influenciaram os teóricos da relação de objeto, a psicanálise francesa, os neo-bionianos, a psicanálise relacional americana e os teóricos de campo. Essas diferentes construções trouxeram mudanças consideráveis na situação analítica, nas relações de transferência e contra-transferência e na condução dos tratamentos contemporâneos que parecem desafiar e/ou expandir as proposições freudianas de 1914. Nesse sentido, pensar a psicanálise contemporânea implica revisitar sua metodologia, sua psicopatologia, o trabalho do analista no exercício de sua função analítica, considerando sua inclusão como pessoa no campo analítico (MARUCCO, 2007).
Assim, um debate sobre as construções da psicanálise fundamentado em Recordar, repetir e elaborar conjuga tanto uma visita às recomendações freudianas (e seus desdobramentos teóricos) para o tratamento analítico, quanto uma discussão sobre as transformações que a psicanálise vem passando no último século. Nesse sentido, nossos encontros visarão recordar e discutir o já conhecido, integrando e elaborando novas perspectivas em busca de uma psicanálise sempre renovada.
Aguardamos vocês!
Carla Penna, Magali de Oliveira Amaral, Maria Theresa da Costa Barros, Regina Orth de Aragão
Referências
BLEGER, J. Simbiose e ambiguidade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1968.
FREUD, Sigmund. (1914). Recordar, repetir e elaborar. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 191-205. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12).
FERENCZI, Sándor. (1928). Elasticidade da técnica psicanalítica. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 25-36. (Obras Completas de Sándor Ferenczi, 4).
MARUCCO, N. Entre el recuerdo y el destino: la repetición. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, n. 105, p. 26-54, 2007. Disponível em: http://www.apuruguay.org/cgi-bin/wxis1660.exe/iah/. Acesso em: 19 de jan. 2016.
WINNICOTT, Donald Woods. (1954). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão dentro do setting analítico. In: ______. Textos selecionados: Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.