Tema do Ano 2017
O Campo dos Afetos: Fontes de Sofrimento, Fontes de Reconhecimento
Questões referentes às representações e aos afetos vem sendo debatidas intensamente desde os primórdios da psicanálise, embora nenhuma das soluções alternativas da psicanálise contemporânea tenha ainda respondido algumas das questões colocadas por Freud sobre esses temas (GREEN, 2002). Para Imbasciati (1998) a psicanálise desenvolveu-se como método de investigação dos afetos e suas formas conscientes e inconscientes de expressão, representação ou impossibilidade de representação tornaram-se primordiais, tanto para a teoria psicanalítica quanto para a clínica.
Estendendo-se do corpo à linguagem, do dizível ao indizível, da ligação ao desligamento, passando pelo trauma, os afetos encontram-se associados às diferentes manifestações da vida afetiva, seja sob a forma de sentimentos, emoções, paixões e humores (GREEN, 2002). Entretanto, tais possibilidades de categorização da vida afetiva podem parecer ingênuas diante das consequências das intrincadas inter-relações entre o mundo interno e o mundo externo nos sujeitos contemporâneos.
As transformações da sociedade, o individualismo excessivo, a cultura narcísica, o desamparo, os processos de exclusão e desenraizamento pessoal e coletivo, bem como a crescente radicalização e polarização no mundo social, inunda os sujeitos contemporâneos de afetos intraduzíveis ou mesmo de sentimentos e emoções que parecem caminhar para além do modelo tradicional da teoria de angústia apresentada por Freud. De fato, a clínica psicanalítica atual encontra-se perpassada por pacientes que apresentam um sofrimento psíquico e social intenso que exige do analista o emprego de estratégias clínicas que permitam acolhimento suficiente, na esperança de que algum dia a “miséria neurótica” possa transformar-se apenas em “miséria banal” (FREUD, 1937/1975).
Ainda em 1993, Pierre Bourdieu cunhou em A Miséria do Mundo o termo “fontes de sofrimento” para descrever fontes e formas de sofrimento social visando compreender, genética e genericamente, o sofrimento que se instala em zonas sociais de fragilidade, cuja ação implica na perda ou na ameaça de perda de objetos sociais, tais como: saúde, trabalho, desejo, sonhos e vínculos. O sofrimento de origem social estaria relacionado, portanto, à uma realidade marcada por processos de exclusão, relações de poder e estruturas sociais violentas que envolveriam a precariedade em todas as suas dimensões (BOURDIEU,1993/2003). A precariedade, a vulnerabilidade social e a anomia de grupos sociais vêm sendo estudada há anos tanto na Filosofia quanto na Sociologia através de autores do calibre de Bourdieu, Castel e Standing. Atualmente alguns autores, inspirados pela ‘vertente afetiva’ das Ciências Sociais, vêm buscando na psicanálise, através do estudo das emoções e dos afetos (HOGGETT; THOMPSON, 2012; SAFATLE, 2015), elementos para a compreensão de processos político-sociais contemporâneos.
Por outro lado, na psicanálise os afetos nunca deixaram de ser investigados, pois decerto, certa dose de sofrimento é inevitável à vida humana e sua inexorabilidade encontra-se ligada à diferentes formas de expressão do mal-estar na cultura (FREUD,1930). Contudo existem formas e fontes de sofrimento (AKHTAR, 2014) que seriam evitáveis e desnecessárias, mas que diante da complexidade e da violência do mundo contemporâneo revelam-se como manifestações de genuína agonia, dor e desesperança diante do conflito social e da deterioração das diferentes formas de inserção no mundo.
Tendo em vista essa perspectiva, o tema de estudo proposto para o ano de 2017, busca explorar diferentes fontes e formas de sofrimento humano, através da discussão em mesas redondas sobre afetos e emoções como: medo, tédio, ressentimento, ódio, culpa, vergonha e desamparo. Pretende ainda – inspirando-se nas discussões de Axel Honneth (1992/2009) sobre a luta pelo reconhecimento – apresentar debates sobre afetos que fomentem ações que busquem restaurar relações intersubjetivas de reconhecimento mútuo, onde o respeito pela alteridade e a criação e manutenção de vínculos pessoais e coletivos como o amor, a amizade a confiança e por fim, a esperança, sejam valorizados. Dessa forma, almejamos contribuir para uma renovada cartografia do campo dos afetos, não apenas em psicanálise, mas também através de seu diálogo com a filosofia, a sociologia e a ciência política.
Contamos com vocês!
Carla Penna, Maria Theresa Costa Barros,
Magali Amaral, Regina Orth Aragão, com a colaboração de Alba Senna e Iêda Bourgeaiseau.
Referências
AKHTAR, Salman. Sources of suffering. London: Karnac, 2014.
BOURDIEU, Pierre. (1993). A miséria do mundo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2003.
FREUD, Sigmund. (1930). O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago,1975. p.75-174. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).
_____. (1937). Análise terminável e interminável. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 239-287. (Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23).
GREEN, André. Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
HOGGETT, Paul; THOMPSON, Simon. Politics and the emotions: the affective turn in contemporary political studies. London: Continuum publishing group, 2012.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2009.
IMBASCIATI, Antonio. Afeto e representação. São Paulo: Editora 34, 1998.
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Autêntica, 2015.