Tema do Ano 2018
Trauma no Cotidiano: Refúgios e Formas de Resistência
No ano passado dedicamo-nos ao campo dos afetos, aos sentimentos e às emoções, destacando as fontes de sofrimento pessoal e social presentes no mundo contemporâneo, conferindo também voz às fontes de reconhecimento e à esperança, disponíveis no campo intersubjetivo. Em 2018, o sofrimento pessoal e social continuará a ser cotejado em nosso ciclo de conferências, desta vez através do estudo do trauma no cotidiano, das defesas associadas às traumatofilias, mas também através das formas de resistência ao traumático em suas dimensões pessoais, sociais e coletivas.
A questão do trauma é cara à psicanálise desde seus primórdios, contudo a importância do trauma oscilou dentro da teoria freudiana. De início, encontrava-se associada à ideia de sedução, saindo de cena para dar lugar à teoria da fantasia, do conflito da defesa e da neurose. Entretanto, a Primeira Guerra Mundial trouxe à tona a neurose traumática e os sonhos traumáticos de repetição, levando o Freud da segunda tópica a repensar suas teorias para debruçar-se sobre a pulsão de morte, a compulsão à repetição e ao trauma.
Vemos emergir assim, no discurso psicanalítico freudiano uma nova relação entre desejo e resistência. Se na primeira tópica e na primeira teoria das pulsões os registros da resistência e do desejo estavam sempre colocados em oposição, nos registros psíquicos do eu e do inconsciente, tal oposição foi colocada em questão na visada da segunda tópica e da segunda teoria das pulsões. Assim aparecem diferentes modalidades de resistência as quais não se restringiam mais, exclusivamente, ao campo do eu. Com efeito, Freud nos fala em “O eu e o isso” e “Inibição, sintoma e angústia” em três modalidades de resistência do eu, ao lado das resistências do isso e do supereu. A resistência do isso se evidencia como compulsão à repetição, a do supereu se expressa pelo sentimento de culpa e pelo masoquismo. Mas, encontramos resistências outras, presentes no psiquismo, que não se inscreveriam no registro do eu, de maneira que uma oposição apenas entre desejo (inconsciente) e resistência (eu) não se coloca mais como inteiramente pertinente, permitindo que se possa falar de desejo de resistência (BIRMAN, 2006), ou como prefere Foucault, formas de resistência, como possibilidade de refletirmos sobre o que se passa hoje no espaço social e coletivo, para além do espaço intersubjetivo.
Bohleber (2010) ressaltou que as catástrofes do século XX, as questões étnico-raciais, o aumento da violência nas famílias e no social no início do século XXI, conferiram novo fôlego à questão do trauma exigindo que teoria e técnica fossem reexaminadas. Nesse sentido, o intenso sofrimento contemporâneo, aliado às questões de vulnerabilidade psíquica e social, vida líquida (BAUMAN, 2007), “cansaço de ser si mesmo” (EHRENBERG, 2000), bem como questões relacionadas às transmissões psíquicas transgeracionais revelaram a presença do trauma no cotidiano. A realidade atual acabou por conferir um novo olhar às antigas questões da psicanálise – que no passado, dualisticamente, opunham fantasia e acontecimento externo, realidade psíquica e realidade material – revelando a intricada relação estabelecida entre mundo interno e mundo externo, realidade e fantasia na configuração das traumatofilias. Assim, a pesquisa contemporânea sobre o trauma apresenta hoje um amplo escopo situado na conjunção de conceitos baseados no modelo psicoeconômico de Freud e em desenvolvimentos provenientes das teorias de relações de objeto e de aportes intersubjetivos (PENNA, 2014).
O trauma caracteriza-se como um afluxo de excitações excessivo em relação à capacidade do aparelho psíquico de suportá-lo ou mesmo como um acúmulo de excitações que tomadas isoladamente poderiam ser toleráveis, mas que em conjunto acabam tornando-se traumáticas (LAPLANCHE, PONTALIS, 1983). Procurando investigar as consequências de experiências traumáticas no desenvolvimento da subjetividade e no adoecimento do psiquismo, diferentes escolas de pensamento em psicanálise têm se debruçado sobre as defesas – que denominamos em nosso título de refúgios – erigidas contra o que é vivenciado pelo sujeito como traumático. Paradoxalmente essas defesas funcionam como escudo protetor, mas também podem aprisionar partes vitais do self ou mesmo o self em sua totalidade, como em psicóticos ou borderline graves. Muitas dessas estratégias defensivas do eu acabam por engendrar bebês sábios (FERENCZI, 1923), sabotadores internos (FAIRBAIRN, 1952), falsos selfs (WINNICOTT, 1960), máfias internas (ROSENFELD, 1971), encriptamentos (ABRAM, TOROK, 1984), encapsulamentos (TUSTIN, 1987), claustrums (MELTZER, 1992) e refúgios psíquicos (STEINER, 1993).
Impulsionadas pelas investigações sobre trauma coletivo, transmissão psíquica transgeracional e células terroristas, o estudo dessas condições patológicas amplia-se adquirindo dimensões teóricos-sociais relevantes na pesquisa sobre o trauma. Dentro dessas novas perspectivas é possível observar no contexto social contemporâneo a criação de “refúgios psíquicos sociais” (MOJOVIC, 2011, p. 211), que oferecem não apenas proteção para sujeitos, famílias e grupos contra os excessos de um cotidiano invasivo e traumático, mas que também permitem o florescimento de criativas formas de resistência psíquica e convívio social.
Para o bem ou para o mal as consequências psíquicas do trauma no cotidiano podem conduzir os sujeitos contemporâneos às patologias graves, às passagens ao ato, mas também podem permitir a criação de espaços protegidos, áreas transicionais de experiência cultural e de diferentes formas de resistência onde o melhor da esperança humana pode florescer.
Aguardamos sua presença em nosso Ciclo de Conferências e suas contribuições para o tema ao longo do ano em nossas Jornadas, Encontros e na Revista!
Bom 2018!
Comissão Executiva Técnica de Formação Permanente
Alba Senna, Carla Penna, Carlos Lannes,
Iêda Bourgeaiseau, Magali Amaral,
Maria Theresa Costa Barros e Regina Orth Aragão