Tema do Ano – 2020
Exclusão, solidão, desesperança: excessos e vazios
O tema Exclusão, solidão, desesperança: excessos e vazios bem expressa o momento sombrio que atravessamos enquanto sociedade brasileira e os impasses e desafios que se apresentam. Nosso intuito ao escolher este tema árduo e árido foi proporcionar um espaço coletivo, entre pares, que possibilitasse uma reflexão rigorosa e necessária sobre este estado de coisas e suas consequências subjetivas, como se espera de uma sociedade de psicanálise.
A sociedade ocidental, apesar da enorme diversidade que a caracteriza e da qual fazemos parte, vem atravessando mudanças normativas profundas que transformaram nossa forma de viver, sentir, sofrer e nos relacionar uns com os outros e com nós mesmos. Até meados do século XX, valores tradicionais como disciplina, obediência e sacrifício orientavam as decisões e ações individuais a partir da polaridade permitido/ proibido, fundamentada na lei simbólica e construída, portanto, a partir de uma experiência coletiva. A transgressão dessas normas exemplares acarretava mal-estar moral e culpa, resultantes do conflito psíquico que, então, se instalava, e se apresentavam enquanto manifestações subjetivas dramaticamente encenadas na clínica da histeria. Foi justamente a escuta sensível de Freud ao sofrimento histérico que o levou a postular a hipótese do inconsciente e, assim, inaugurar a psicanálise que já de início denunciava o mal-estar que se evidenciava no contexto próprio da modernidade mostrando portanto, inequivocamente, a articulação inexorável entre condições sócio-históricas e processos de subjetivação.
Outros valores normativos passaram a vigorar a partir, principalmente, das transformações cruciais da década de 60. Exigências de autonomia, desempenho competitivo, iniciativa pessoal e, acima de tudo, o estímulo à liberdade individual, emergiram em torno de um novo eixo normativo agora constituído pela polaridade possível/impossível, oriunda exclusivamente de critérios individuais que preconizavam o direito de livre escolha e a responsabilização de cada um pela condução de sua própria vida. Intensificou-se, assim, o processo de emancipação do indivíduo agora libertado das amarras morais tradicionais e instigado a se tornar agente de sua própria história na busca da felicidade enquanto promessa e direito individual.
Nesta nova configuração do espaço social, em que as formas de viver e sentir e, principalmente se relacionar com o outro se dão no âmbito de um individualismo exacerbado, o limite da ação do sujeito é individualmente estabelecido, caso a caso, a partir das possibilidades de cada um. É o eu soberano que determina seu agir cada vez menos pautado numa lei compartilhada, num contexto que se caracteriza pela fragilização das referências simbólicas e institucionais, marcado pela desigualdade nas suas diferentes apresentações e pela dificuldade narcísica de lidar com a diferença e a alteridade.
Este é o cenário contemporâneo em que o pulsional se manifesta na sua expressão mais violenta e destrutiva, na ausência de mecanismos psíquicos de contenção consistentes que possam garantir o funcionamento da capacidade de representação. Estamos na presença de um laço social esgarçado e, portanto, insuficiente para impedir o impacto de um narcisismo de morte que interfere com o trabalho psíquico de vinculação e representação, e expressa o fracasso de trabalho do negativo estruturante e garantidor do convívio no coletivo. É neste contexto que presenciamos a exacerbação dos mecanismos de segregação, discriminação e exclusão que apontam justamente para a crescente dificuldade de lidar com a diferença. É aqui que a solidão e a desesperança passam a predominar quando a exclusão, em última instância, ameaça a própria condição de sujeito como não nos deixam esquecer os campos de refugiados e as comunidades submetidas a condições de extrema pobreza.
A exclusão, todavia, não se manifesta apenas no âmbito social, mas também enquanto exclusão psíquica, intrapsíquica e intersubjetiva. Nas clivagens, na formação dos enclaves psíquicos presenciamos a ação da exclusão que segrega e divide, assim como também nas passagens ao ato com a descarga pulsional e nas relações de objeto excludentes e tirânicas. A exclusão também se apresenta como privação, nos quadros de narcisismo moral, por exemplo, ou como exclusão perceptiva nas situações de alucinação negativa. Antes de mais nada, no entanto, excluir representa o movimento inaugural do eu do prazer original que “deseja introjetar para dentro de si tudo quanto é bom e ejetar de si tudo quanto é mau” (FREUD, 1925), na lógica do julgamento de atribuição. Excluir, finalmente, enquanto apagar, fazer esquecer o objeto primário que nos habita é o requisito fundamental para a constituição do espaço psíquico pessoal que nos permite representar e desejar, processo gravemente entravado nas patologias narcísicas da atualidade.
Cientes da insuficiência do saber psicanalítico na discussão deste tema complexo e multifacetado convidamos colegas das Ciências Sociais para esta conversa, na sua essência infindável, sobre a exclusão que nos assola de fora e de dentro e seus efeitos subjetivos tão pungentes. Que esta conversa possa ocorrer num ambiente ventilado (GREEN, 1975) onde predomine a circulação de ideias e afetos na busca de uma maior compreensão do contexto que nos rodeia e do contexto que nos habita, universos ainda, e provavelmente sempre, tão enigmáticos.
Comissão Executiva Técnica de Formação Permanente
Claudia Amorim Garcia
Elisabeth Adler
Lia de Chermont Próchnik
Regina Orth de Aragão