Tema do Ano – 2022
Afinando a escuta: “um enorme passado pela frente”
“Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade,
confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas
alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar
sua história e recriar-se em suas potencialidades”.
Neusa Santos Souza
No ano de 1986, durante o Rencontre Latino-Americaine de Psychanalyse em Paris, a psicanalista negra brasileira Isildinha Baptista fez um contundente discurso autobiográfico no seminário chamado O psicanalista em tempos de terror. Após um silêncio geral, Françoise Dolto reagiu dizendo: “me perdoe, não tenho o que falar. Sua fala sangra. Sua fala é você. A psicanálise lhe deve isso, temos que pensar sobre isso”.
Esse é o nosso convite, na inspiração de Françoise Dolto, Neusa Santos, Virgínia Bicudo e tantos outros: temos que pensar sobre isso!
No Brasil, a escravidão durou mais de 350 anos, fomos o último país a aboli-la e mesmo assim através de um ato jurídico sem nenhuma preocupação com a inserção de fato da população anteriormente escravizada.
Como afirmou Joaquim Nabuco, não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir sua obra. Impossível não repensarmos nossa escuta analítica diante do fenômeno global, historicamente negado, de um racismo estrutural que nos convoca a reconstruir nosso olhar sobre os modos de subjetivação dos corpos e as dolorosas marcas da violência racista na economia psíquica.
A proposta da Comissão para este ano é encarar de frente os ecos do passado escravagista e racista que insistimos em negar e que se presentificam de diversas formas, como na naturalização das desigualdades, preconceitos e precarização do trabalho. Pouco fizemos para abalar a montagem perversa de desigualdade e racismo. Como afirmou Millôr Fernandes: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”.
Como cidadãos, psicanalistas e pesquisadores, recalcar, cindir e denegar este passado nos torna cúmplices dele. Temos o compromisso ético de afinar nossa escuta numa clave que permita a sua perlaboração. Por isso queremos trazer o tema Psicanálise e Racismo para o centro de nosso debate institucional, ao mesmo tempo em que enunciamos a inauguração de um grupo de estudos aberto aos membros e analistas em formação.
Reparação histórica é algo que se dá em diferentes níveis e a urgência desta questão clama por um movimento no interior de nosso próprio campo de conhecimento. Atravessado pelos fatos de memória, o fazer analítico se dedicou, desde Freud, à abordagem do indivíduo e da cultura. Este é o ideal que nos move nesta gestão e esperamos que possa se desdobrar nos anos que se seguirão a nós.
Quase quarenta anos depois da fala de Isildinha e da intervenção de Dolto, são políticas de ações afirmativas que se fazem necessárias.
Ao propor este tema para 2022, estamos convidando a todas e todos, assim como já o fizeram várias instituições parceiras, a se engajar num trabalho em prol de uma psicanálise sensível à escuta da questão racial.
CFP
Beatriz Pinheiro de Andrade
Ana Lila Lejarraga
Diana Dadoorian
Fania Izhaki
Marcia Gaspar Gomes
Tereza Mendonça Estarque
Jurandir Freire Costa (Consultor)