Winnicott
Neyza Prochet
Donald Woods Winnicott, pediatra e psicanalista britânico da segunda metade do século XX, vem recebendo, por fim, o reconhecimento merecido por suas extraordinárias contribuições oferecidas à Psicanálise. Passados 30 anos de sua morte, sua obra continua viva, atual, antecipando, em algumas décadas, a muitas das concepções postuladas pelas teorias da complexidade e da intersubjetividade, encontrando hoje, dimensões insuspeitadas. Se fosse necessário sintetizar toda a riqueza de sua obra em uma só palavra, escolheria criatividade. Winnicott considera que as experiências vividas, internas ou externas, possuem uma qualidade diferencial dada pelas diferentes formas possíveis de interação entre elas. Ele busca um sistema compreensivo do viver humano dentro de uma perspectiva ontológica e unitária da experiência, onde o ponto de partida da compreensão deste sistema se funda nas condições constitucionais de um indivíduo e nas relações ambientais que o circundam durante este processo. Cria os conceitos de fenômeno e objeto transicionais para compreender o processo de transição da dependência absoluta da criança em relação à mãe (vista como um objeto subjetivamente concebido) à conquista de uma relativa independência (onde a figura materna se localiza além do controle onipotente).
Um processo que não se dá através de um desenvolvimento linear, com a superação de estágios gradualmente mais complexos, mas por meio de um processo sistêmico, relacional, de combinações inclusivas. Winnicott preocupou-se em não alienar em campos distintos terapeuta e teoria, tendo como objeto de estudo a relação humana com o saber instituído, mais especificamente, o relacionamento entre o psicanalista, o modelo teórico por ele adotado e a prática clínica. Uma passagem ocorrida com Winnicott, relatada a Grolnick¹ (1993) por Claire Winnicott, ilustra bem sua opinião diante da questão: Num debate acirrado dentro da Sociedade Britânica de Psicanálise sobre determinados procedimentos técnicos, como número mínimo de sessões semanais, perguntaram a Winnicott o que ele achava ser psicanálise ou não. Ele responde sucintamente: -“Se é psicanálise? Ora, depende de quem faz”.
O processo psicanalítico é, assim, inscrito na mente do analista, não sendo ancorado a critérios externos que não poderiam conter a flexibilidade necessária para se lidar com o dinamismo existente nas relações estabelecidas. Os conceitos de setting, holding, aliança terapêutica, são criações psíquicas que não podem ser avaliados em termos físicos apenas, pois pertencem à quela área intermediária que Winnicott denominou de espaço potencial. O espaço analítico é um espaço relacional, um espaço de mudança, criado a partir da inter-relação dos elementos existentes neste espaço – do analista que aceita e deseja a responsabilidade de criar este espaço de convivência dentro de um contexto, utilizando um certo fio condutor e do analisando que aceita compartilhar este espaço e o modifica através de sua participação, produzindo uma dinà¢mica na qual ambos mudam. “O que fazemos juntos é sempre uma coisa bastante natural; algo limitado é retirado das formas naturais de cuidado infantil e da vida doméstica, ou de ser uma criança em desenvolvimento ou de não ter êxito no contexto que surge.
Se observarmos que estamos fazendo algo ou nos comportando de uma forma que não tem contrapartida na vida e na vivência cotidianas, então nos recompomos e pensamos novamente. O que fazemos é organizar um ambiente profissional constituído de espaço, tempo e comportamento, que compõe uma área limitada da experiência da criança ou do cuidado com crianças, e vemos o que acontece. Isto é análogo à forma na arte”.²(p.160) O espaço potencial é um campo de ação que ultrapassa a dicotomia internalidade-externalidade, onde um objeto, coisa, pessoa, experiência não se reduz a um único significado para o indivíduo, mas está inserido num processo onde a psique humana segue um curso aberto, cheio de plasticidade, de evolução e desenvolvimento. Novas significações são passíveis de emergir a medida que novas formas de viver e se relacionar emergem na pessoa, e onde o tempo e a forma destas interações são, por si só, agentes de mudança e transformação. Green³ (1988) faz a analogia de que, se Freud à s vezes comparava a situação analítica ao jogo de xadrez, poderíamos comparar a obra de Winnicott ao jogo que este criou, o jogo do rabisco, tradução gráfica do espaço analítico, da maneira como ele o percebe. O autor assinala: “O significado não é descoberto, é criado. Prefiro descrevê-lo como um significado ausente, um sentido virtual que aguarda sua realização através de cortes e modelações oferecidos pelo espaço (e tempo) analíticos. É um significado potencial. É constituído na e pela situação analítica; mas se a situação analítica o revela, entretanto não o cria. Leva-o da ausência para a potencialidade e depois o torna real. Torná-lo real significa suscitá-lo à existência, não fora de nada (pois não existe geração espontà¢nea), mas fora do encontro de dois discursos e por meio daquele objeto que é o analista, a fim de construir o objeto analítico.”.(p.296) “Meu ofício é ser a mim mesmo”, diz Winnicott. Na intimidade do Eu, do si mesmo, num lugar nunca totalmente revelado, localiza-se o cerne da existência humana, cerne que buscará sempre um senso de continuidade a ser mantido através das mudanças e variações do ambiente em volta. Em princípio, a sustentação desta continuidade é dada pelo cuidado materno, que, quando bem realizado, dá à criança a ilusão de que o mundo foi criado por ela.
A capacidade criativa será a raiz que irá permitir, mais tarde, que a criança possa sustentar-se por si mesma e que sejam suportáveis as desilusões e o reconhecimento de uma potência limitada, substituindo o sentimento de onipotência original. Tal capacidade é o instrumento que permitirá uma adaptação não submissa do indivíduo ao meio, permitindo-lhe manter o sentimento de ser a si mesmo nas interações com o mundo. Winnicott enfatiza o aspecto criativo da experiência do viver, apontando seu lugar: o espaço potencial, herdeiro desta relação básica original, ocorrida antes que este bebê descobrisse que não era o centro do universo, e que fornece, quando existente, os alicerces para um desenvolvimento saudável. Esta conquista tem como resultante a ação criativa, que transparece no que Winnicott chama de “gesto espontâneo”, gesto que surge como um movimento pessoal expansivo, inicialmente dirigido ao objeto subjetivo e depois ao outro, objetivamente percebido. Um gesto modulado pelas circunstà¢ncias que o cercam, promotor de vida. Há, no homem, a necessidade de uma continuidade de experiência e de ser que ultrapasse a cronologia de uma existência singular, uma continuidade de ser na cultura, vivendo-a no sentido pleno da palavra. Winnicott considera que esta necessidade de continuidade talvez seja o que caracterize a condição humana 4 – o desejo de poder legar uma marca pessoal à queles que virão, garantindo a continuidade da raça humana e a transcendência de uma existência pessoal. Voltando à pergunta feita a Winnicott há mais de 50 anos atrás: O que é psicanálise? O que não é psicanálise? A obra de Winnicott, de encontro ao pensamento contemporà¢neo, pulveriza a crença na verdade única, na supremacia da exatidão, na necessidade da convergência, que traz em seu bojo a imutabilidade. Ela nos abre novas perspectivas onde é possível ser original, é possível ter uma linguagem pessoal e é possível que estas contribuições acrescentem algo ao conhecimento psicanalítico. Nunca vamos saber tudo, muito menos à priori.
O trabalho analítico nos ensina que o saber é uma experiência de permanente rearticulação e re-significação, onde as experiências posteriores modificam e reordenam a memória e a compreensão do passado. É esta plasticidade que faz a vida e a psicanálise interessantes e apaixonantes, mas também faz da vida e da psicanálise algo que temos que abrir mão do controle total. A criatividade surge quando se é possível usufruir, sem medo do aniquilamento, o desconhecido. Winnicott nos ensinou que a ação criativa é uma atividade que se estende por toda a existência e nos permite fazer de nosso trabalho uma tarefa que vale a pena ser exercida. Neyza Prochet Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro Mestre em Psicologia Clínica pela USP – SP Doutora em Psicologia Clínica pela USP – SP Referências: 1- Grolnik, Simon. Winnicott: O trabalho e o brinquedo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. 2- Davis; Wallbridge. Limite e espaço: uma introdução à obra de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 1982. 3- Green, A. Sobre a loucura pessoal. Rio de Janeiro: Imago, 1988. 4- Winnicott, D.W.. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
Neyza Prochet
Referências Bibliográficas:
1- Grolnik, Simon. Winnicott: O trabalho e o brinquedo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
2- Davis; Wallbridge. Limite e espaço: uma introdução à obra de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 1982.
3- Green, A. Sobre a loucura pessoal. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
4- Winnicott, D.W.. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
Dados da autora:
Neyza Prochet
Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro
Mestre em Psicologia Clínica pela USP – SP
Doutora em Psicologia Clínica pela USP – SP